GRAFFITI E STREET ART
Muita tinta!
A cidade contemporânea é um artefacto cultural em constante mutação, o resultado de forças históricas e de dinâmicas socioculturais díspares. Diferentes usos e representações do espaço ajudam a compor este habitat, simultaneamente vibrante e complexo. O espaço metropolitano é, por isso, lugar de contendas de natureza simbólica, colisões entre visões e apropriações do território que nem sempre convivem harmoniosamente. É também este o cenário para o curioso mundo do graffiti e da street art.
Percorridas quotidianamente por milhares de pessoas, as artérias metropolitanas oferecem uma vasta plateia àqueles que pretendem comunicar com a massa indistinta. A materialidade urbana pode, assim, ser usada não apenas como mecanismo de ordenação da cidade mas igualmente como refúgio de resistência, contestação e inversão da ordem. Uma arqueologia das expressões insurrectas na arquitectura urbana conduz-nos aos inevitáveis exemplos das palavras de ordem do Maio de 68 Francês, às pichações e murais políticos no Portugal da ditadura e do pós - 25 de Abril, aos escritos e graffitis presentes no muro de Berlim ou na Palestina ou, mais recentemente, ao graffiti inspirado na cultura hip-hop de origem nova-iorquina.
Diversas situações, histórica e geograficamente longínquas, anunciam a capacidade de actuação dos cidadãos nos interstícios físicos e sociais da metrópole contemporânea. No quotidiano, diferentes pessoas, agindo solitariamente ou em grupo, apropriam-se dos recursos concedidos pela matéria urbana inserta num campo de visibilidade, operando na sombra da vigilância do poder, reivindicando uma voz através do único canal que lhes é acessível: o espaço público.
Códigos e processos criativos
De um modo geral, o cidadão anónimo já aprendeu a falar de graffitis. De há cerca de duas décadas para cá, período em que os murais e as frases politizadas pós-25 de Abril cederam o lugar a protagonistas e emblemas de uma nova era, invocando outras referências e bandeiras, fomo-nos acostumando a este termo estrangeiro, entretanto naturalizado. O que entendemos então quando nos referimos ao graffiti? O termo aplica-se usualmente às inscrições executadas no espaço urbano citadino, em suportes diversos, como os muros, as paredes e variado mobiliário urbano, através da utilização de diferentes instrumentos (geralmente o aerossol ou o marcador). Daí que a definição comum abarque um conjunto extenso de actividades, códigos, técnicas e processos criativos. Numa percepção alargada deste universo podem inscrever-se expressões da denominada street art, obscenidades rebuscadas, frases românticas, aclamações desportivas, entre tantas outras demonstrações de inesgotável competência criativa do sujeito urbano. Porém, uma tag (assinatura e pseudónimo do writer de graffiti) não é semelhante a uma palavra de ordem de um militante político, nem a uma declaração de amor. O writer é aquele que pinta graffiti de acordo com uma série de convenções e técnicas que têm origem na cultura hip-hop, nascida à mais de três décadas na cidade de Nova Iorque. Esta é, actualmente, a versão dominante do graffiti, aquela que impera na nossa paisagem urbana. Aquilo que os writers procuram é ganhar visibilidade, adquirir fama e respeito a partir da disseminação das suas marcas nas superfícies da cidade.
Manifestação mural
O graffiti enquanto manifestação mural, de ordem verbal ou pictórica, deriva de um exercício de expressão transgressivo, é uma manobra operada sobre uma superficie proibida.
O graffiti encerra, assim, um duplo sentido comunicacional. Em primeiro lugar, a transgressão, que ostenta desobediência e recusa da norma. Os dois estão interligados, o conteúdo articula-se com o acto de infracção, fora deste contexto perde o seu valor.
Voz minoritária e dissidente
Havendo uma concepção mais consensual dos usos e significados atribuidos ao habitat, partilhada pela maioria, poderíamos certamente afirmar, sem receio de criar polémicas, que o graffiti interpreta uma voz minoritária e dissidente na cidade polifónica.O discurso oficial e dos média, que geralmente encontra eco no cidadão comum, tendem a catalogar o graffiti como vandalismo, ou seja, uma agressão, uma violência exercida sobre a cidade e, por extensão, sobre a sociedade. Uma incisão na corporeidade da sociedade que atinge o âmago da sua alma colectiva. Fazer graffiti implica, portanto, não apenas um ataque à materialidade ordenada do espaço mas, e mais grave, àquilo que de mais profundo reconhecemos numa comunidade humana: o significado do mundo. Daí a incompreensão e repressão que atingem o graffiti, pois este quebra convenções, abala convicções e a harmonia do lugar, tal como é entendido pelo discurso dominante. Não por acaso, é considerado sujo, desprovido de senso, simples poluição.
Ocupação da paisagem urbana
O que se pretende no graffiti, pichação, street-art e demais expressões, é uma espécie de ocupação da paisagem urbana, a conquista de um espaço de comunicação exposto para um público imenso e indeterminado.
O graffiti e a street art (também denominada por alguns como pós-graffiti) assumem, em muitos casos, uma evidente preocupação estética. O aperfeiçoamento estilístico e técnico, o desenvolvimentos de linguagens pictóricas singulares, são objectivos partilhados por muitos. Esta prática minoritária sugere uma dissociação entre a arte erudita (ou a cultura elevada) e aquilo que podemos denominar genericamente como arte de rua, mais alicerçada no dia-a-dia, no espaço público, na cultura de massas e nas novas tecnologias. E não é por acaso que este se assume como um domínio essencialmente juvenil. No contexto das culturas juvenis a fruição estética é mais próxima e física, pode-se tocar e sentir, colidindo com uma ideia de arte distanciada e contemplativa. Os bens estéticos expõem-se e criam-se nas paredes das cidades, no monitor do computador, nas câmaras digitais e no telemóvel, nos corpos tatuados, nos cadernos de desenhos, no quarto ou numa a garagem recheada de instrumentos musicais. A estetização irrompe do quotidiano, com uma forte presença da visualidade que tudos abarca, da expressão corporal e do estilo, às tatuagens e piercings ou ao graffiti e street art.
(Tanscreve-se, com a devida vénia, a análise antropológica de Ricardo Campos - cientista social e investigador CEMRI-UAB, publicada na revista CAIS #150)
Fotos © 2013 Armando Isaac