PELAS MARGENS DO DOURO
CANÇÃO DO VINHO DO PORTO
Tu, que hás-de um dia provar-me:
Lê meu rótulo e sorri:
Mil oitocentos e quinze…
Foi o ano em que nasci.
Portugal, se é conhecido
Nas estrangeiras nações,
É por ser a minha pátria
E a de Luís de Camões.
Torrão que produz tal vinho
E que tal poeta deu,
Não é torrão deste mundo,
É torrão d’anjos, do céu!
Nasci nas ribas do Douro,
Rudes e caniculares,
Onde, no estio, parece
Que anda o inferno p’los ares.
Sob esse calor, o sangue
Das cepas muda-se em oiro;
Que penhas sois vós, que dais
Tal vinho, ó penhas do Douro?
O que escondeis nas entranhas,
O que é que vós tendes nelas?
Ocultai fulvos tesoiros,
Ou estais grávidas de estrelas?
Neste ambiente de brasas,
Foi pesada a minha cruz,
Mas em prémio do martírio
Sublimei-me em cor e luz!
Assim me tornei, sentido
Tonturas bem dolorosas,
Na liquefacção divina
De mil estrelas com mil rosas.
Oiro líquido pros olhos,
Doirados sonhos desperto;
Jardim d’Abril para o olfacto,
Sou pra boca um céu aberto!
De Chipre o clássico vinho
E a própria ambrósia dos Numes,
Nem aos calcanhar’s me chegam
Na luz, na cor, nos perfumes!
Velha Roma, abranda a embófia
Desse teu orgulho eterno:
Ao pé de mim é zurrapa
O teu cantado Falerno!
Metido nesta garrafa
Por mão sabida e prudente,
Como jóia, fui passando
Pelas mãos de muita gente.
Até que um dia, por voltas
Da Sorte obscura e secreta,
Vim ter, sem saber porquê,
À garrafeira de um poeta.
Sem saber porquê, não digo,
Sei muito bem porque vim:
É poeta, sou digno dele,
Como ele é digno de mim…
Sendo poeta, é pai de filhos,
E o que mais no mundo o atrai
Não é ser um grande poeta
Mas ser, sim, um grande pai!
Assim já sei onde um dia
Hão-de resplender meus brilhos:
Guardado estou com certeza
Pra boda de um dos seus filhos.
Aqui preso há tantos anos,
Sem respirar, arrebento:
Deus faça depressa a boda
E feliz o casamento!
Autor: Eugénio de Castro
Fotos: © 2017 Armando Isaac